Iles flottant: os seios de Alaíde
Conheci Alaíde no primeiro ano da faculdade de Filosofia, em 1968. Um ano de descobertas, em que eu não entendia nem metade do que estava acontecendo.
Imagine o que era um curso de Filosofia na PUC, naqueles anos de repressão. Tínhamos apenas dois professores dando aulas (os outros, não sei por onde andavam): o Monsenhor Santamaria, um padre gordo espanhol, que ensinava filosofia oriental – sabíamos tudo sobre os Upanishades – e o padre Araujo, sempre suado, fedido e com uma roupa encardida, que dava as aulas de filosofia medieval. Como, além disso, tudo era considerado subversivo, só no último semestre do último ano ouvimos falar um pouco de Kant. Mesmo assim, aquela história de imperativos categóricos (o quê? imperialismo categórico?) “não sei não…”!
Isso dentro da sala de aula. Fora era um tal de assembléias que não acabava mais, filmes “cabeça” no Tuca, greves contra o Mec-Usaid. Eu confesso que achava aquilo tudo uma festa… Claro que eu também saía nas passeatas e atirava pedras no Citibank. Mas no fundo, morria de medo, porque tinha gente que não voltava dessas passeatas, ou voltava bem estropiado, cheio de hematomas. Tudo era perigoso, podiam entrar dentro da casa da gente para procurar uns livros… Corria um boato que tinha até gente desaparecida, que nem o pai e a mãe sabiam onde estavam.
Mas a nossa verdadeira preocupação, minha e das amigas recém-saídas do Colegial, era saber “até onde podíamos ir” com os nossos namorados. Isso era assunto polêmico, motivo de discussões intermináveis. A Revolução Sexual estava apenas começando… E era essa a revolução que nos interessava! Tinha a ala radical – das “liberadas” – e a ala moderada, das que achavam que se podia avançar, sim, porém aos poucos e estrategicamente. As estratégias, obviamente, não podiam ser discutidas em qualquer lugar. Para isso tínhamos o nosso “aparelho”, a casa da Alaíde. Ali Marx não entrava, mas entravam todos os outros barbudos da PUC – pelo menos em fantasia.
Alaíde era a menina mais bonita da turma. Era muito branca, com cabelos compridos, sedosos, naturalmente lisos e loiros. Isso mesmo: na-tu-ral-men-te lisos e loiros, não precisava clarear com chá de camomila nem fazer “touca”. De morrer de inveja! A boca, então, era algo indescritível: lábios brilhantes, carnudos, cor-de-rosa (tudo isso sem batom nem brilho), sempre abertos num sorriso gostoso, o mais franco que eu já vi. E o melhor de tudo: Alaíde era livre.
Nunca conhecemos seu pai. A única explicação que ela nos deu foi que, num belo dia, seus pais se separaram e ele foi embora. Só! Desde então, sua mãe trabalhava fora. Outra novidade, porque os pais naquela época não se separavam e as mães não trabalhavam fora de casa. Alaíde reinava sozinha naquele sobradão. Era o lugar ideal para nossas reuniões. Obviamente o pretexto era estudar, fazer trabalhos em grupo, pesquisar. Mas confesso que meu principal interesse de pesquisa era a vida sexual dela. Mas vamos por partes.
Em casa, Alaíde estava sempre de camisola, a qualquer hora do dia. Ela nos recebia assim, com aquela camisola de algodão, um quase nada transparente, com estampas de florzinhas, franzido no ombro. Parecia um anjinho de procissão, não fosse o detalhe de não usar soutien e ter sempre um cigarro na mão. Porque, Jesus, ela também fumava! Na própria casa, não precisava esconder… Imagine! Eu, se meu pai me pegasse fumando, me faria engolir o cigarro aceso. Ainda bem que eu nunca consegui fumar, apesar de ter me esforçado. Tentei até um cigarro mentolado – chamava-se Consul – mas eu sempre tossia muito e, quando insistia, quase vomitava.
Outro detalhe: ela gostava de estudar no quarto, sentada na cama, com todos aqueles livros abertos, cadernos, pastas, xerox. Só que às vezes tudo aquilo estava no chão, e a cama um verdadeiro ninho de mafagafos. Então ela explicava, com aquela cara mais normal do mundo, que Fulano ou Ciclano tinha vindo estudar e que, “bom, aconteceu!”.
“Como assim?”, eu perguntava, já antecipando o exercício da minha futura profissão.
Ela respondia que “tinha acontecido” e eu não me conformava que pudesse “ter acontecido” ali, na casa dela, com um cara que nem era seu namorado… O que será que tinha acontecido? “Teria acontecido mesmo?
E como as perguntas continuassem, ela dizia que depois contaria, que era hora de estudar. E vá se concentrar em Santo Tomás de Aquino com aquela curiosidade toda, a excitação “a mil”.
Finalmente chegava a hora de comer alguma coisa, fazer um lanche, “dar uma pausa”. Íamos para a cozinha e aí era o máximo. Ela colocava em cima da pia um monte de ovos, o litro de leite e o pote de açúcar. Com uma facilidade espantosa, ia quebrando os ovos e separando as claras das gemas. Tudo separado, misturava as gemas com o leite já adoçado e punha para ferver. E começava a bater as claras, andando de um lado para outro, os seios em liberdade, contando “como tinha sido”.
Eu ficava absolutamente fascinada, mas já não me lembro se era por causa das histórias ou por causa do cheiro de leite doce fervendo. Certamente eram os dois. Eu me lembro que tinha também um cheiro de baunilha, mas ela jura que não tinha baunilha na receita (para escrever essa receita, eu descobri o telefone dela, liguei e perguntei). Então eu acho que o cheiro de baunilha era mesmo dela. Eu não me espantaria se fosse …
Aí vinha uma parte que eu achava que era coisa de circo. Ela pegava, com uma escumadeira, uma porção de clara daquela montanha branca e jogava no leite fervendo. Depois de cozida, ela retirava aquela ilha de neve com cuidado e a colocava em uma taça de vidro. Fazia assim com cada uma delas, até não sobrar mais clara. Então, com uma colher de pau, mexia bem o leite, que a esta altura já tinha engrossado, e ia jogando essa calda sobre as ilhas. Estava pronto, mas ainda era preciso deixar esfriar. Voltávamos para os livros, minha concentração ainda mais reduzida, torcendo para aquela maravilha esfriar logo e procurando, nos lençóis, os vestígios de suas histórias. Seriam verdadeiras ou não? Até hoje não sei…
Finalmente, quando ela achava que o doce já devia estar frio, voltávamos para a cozinha. Essa, então, era a verdadeira liberdade, porque podíamos comer até enjoar. Ninguém se preocupava com dietas, calorias e celulites, palavras que só vim a ouvir décadas mais tarde. E como aquilo que não se conhece não existe (pra isso vale estudar filosofia), nunca soubemos que aquelas covinhas todas no bumbum, tão simpáticas, tinham um nome: ce-lu-li-tes.
Não sei quantas tardes dessas, deliciosas, passamos juntas. Só me lembro que nos afastamos quando Alaíde começou a namorar um “cara de direita” e eu, um dos tais barbudos das assembléias. Por motivos ideológicos e por compartilharmos das ideias dos namorados, nos separamos. O que foi uma grande estupidez, porque com o tempo terminamos os namoros e ser “de direita” ou “de esquerda”, hoje, já não faz mais tanta diferença! E ficamos muitos anos sem ter notícias uma da outra.
Quando a vi pela última vez, há mais ou menos cinco anos, ela continuava linda nas suas formas generosas, os seios ainda empinados (agora com silicone), mas o olhar já não brilhava tanto: tinha um quê de tristeza nele. No entanto, quando perguntei se ela ainda fazia as ilhas flutuantes, ela deu uma boa gargalhada, bem debochada, e respondeu: “Não, não faço mais. Quem faz esse doce agora é meu filho, e faz muito melhor do que eu. Cada menina que ele conhece, ele leva pra casa, faz esse doce e elas ficam encantadas… Ah, aquele sedutor!”
Publicado originalmente em WEINBERG, C. (org.) Sabores inconscientes. Receitas sem culpa. São Paulo: Sá Editora, 2008, p. 65-70.